quinta-feira, 19 de novembro de 2009

GERMAN. ALBION.


Chego em casa de German. Está tocando a sua velha e cansada música. "Está ficando eterna", comenta, "o problema é que eu é que não sou eterno. É a única composição não composta que conheço".
German está num daqueles intoleráveis dias de auto-piedade. "É que não sei nada de música. O piano me atrai, por isso vou até ele e tento fazer alguma coisa, alguma coisa... mas sempre sai a mesma música, esqueço todos os ritmos que conheço. Aliás, não sei executar ritmo algum, e sempre sai a mesma e entediada música (desculpa, musiquinha, eu gosto de ti). Corrijo, ela não me entedia. Ao contrário, funciona como catarse - será que a colocação está certa? - ou como elemento catalisador de meus sentimentos - mas aí fica pedagógico demais, não é? Então vamos dizer assim: eu, German, não sou o Rei dos Pirineus!"
Deixo German falar. É a única maneira de acalmá-lo, fazer-me de compreensivo, uma espécie de analista sem sofá. Se bem que German talvez seja a única pessoa que conheço que não precisa de análise. Está satisfeitíssimo com o seu mundo. Na verdade, a auto-piedade é uma maneira de justificar aos outros o seu isolamento, sua aparente ruptura com o mundo. Ele se achincalha antes que os outros o achincalhem: o que sobrar é lucro.
German se superestima. É uma espécie de Narciso moderno que faz seus próprios espelhos - bem aconchegantes, de preferência.
Descobri isso agora e digo tudo para ele sem lhe dar chance de me interromper. Ele apenas me observa, com aquele olhar analítico e desconfiado de olheiro de seleção de amadores.
German é assim. Feito de longos discursos e longas pausas. Mas desta vez não posso lhe dar a vantagem da pausa, e digo: German, eu não vim aqui para intelectuar ("intelectuar" é uma palavra que German descobriu e me fez incluir em um de meus poemas; German também faz às vezes de crítico de arte) - a gente precisa bater aquele papo.
- "Qual deles?"
- Sobre Rita.
- "Rita é incrível!" - e esse incrível bate lá dentro e volta. É mais do que eu poderia dizer.
(Ó, German!, porque tens sempre a palavra certa no momento certo?)
Mas não posso pensar. Não posso lhe dar tempo para pensar. Insisto: - tu não tens sido honesto comigo, tens saído com ela e eu não gosto disso, embora possa parecer chauvinismo. Eu sei que tem essa estória de libertação da mulher e pá-pá-pá, mas qual é?!
"Tudo bem, cara". German acende um cigarro, sorri para mim com o mais angelical dos sorrisos: "eu já disse que não sou o Rei dos Pirineus, um título que caberia melhor a ti, pela juventude, força e beleza - se queres ouvir elogios. Mas não posso me impedir de gostar de Rita, de amar Rita, de me sentir feliz por Rita existir. Mas tudo bem, eu não fui nem serei - talvez já tenha sido em priscas eras (a literatice proposital de German é o que faz com que German seja German - como odiá-lo?) - o Rei dos Pirineus, quero dizer, podes me chamar de Albion, se quiseres, mas estou aqui, com a minha eterna música não composta e com Rita, se ela me quiser - assim e apesar de - independente da tua existência ou da relação de vocês".
Nova pausa. German continua fumando, mas seu olhar, agora, é mais sincero. Levanta-se, brinca com as teclas, senta na banqueta, recomeça a tocar.
Está de costas para mim, eu poderia matá-lo. Seria o trágico e esperado fim. "Você poderia me matar. Estou de costas, não iria me defender. Seria o trágico e esperado fim, não?"
Eu me aproximo, toco-lhe o ombro em sinal de despedida, acaricio seus cabelos como quem acaricia um gato (terei ouvido German ronronar?). É impossível atingir German.
Desço as escadas com aquele som martelando, martelando. Na calçada, lembro que German não me ofereceu chimarrão.
Vou ver Rita, penso. E caminho decidido.

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