terça-feira, 30 de novembro de 2010

FICÇÃO


Vamos imaginar, apenas imaginar, uma grande empresa de telecomunicações que tem tanta influência, mas tanta influência em determinado pais, também imaginário, que é capaz de colocar e tirar presidentes, idiotizar completamente o povo, manipular consciências, provocar desejos e fazer até guerras civis.

     Virtuais, ou quase isso. Guerras civis sem o nome de guerras civis, sem o rótulo de guerras civis, mas guerras civis. Tudo pela audiência. Essa empresa se deu conta, desde a primeira guerra do Iraque, que guerra dá mais audiência que novela. As pessoas ficam hipnotizadas ao verem aquelas balas coloridas cruzando os céus, principalmente se for de noite, ouvindo explosões, vendo o fogo de prováveis alvos destruídos e ouvindo alguns narradores entusiasmados, que se revezam a cada hora, explicar como funcionam os ataques, as armas que são usadas, as situações que são criadas e as prováveis conseqüências de tudo aquilo. As pessoas acabam ficando entusiasmadas e a audiência é incalculável. Ganhos astronômicos.

     A empresa fictícia já tem o seu público certo, mas, também, existem outras empresas do mesmo ramo que estão crescendo e ameaçando abocanhar parte desse público. Então é necessário inventar algo novo. Por que não uma guerra civil? – diz alguém. É uma possibilidade. Tudo é possível, pois o país é tão fictício quanto a empresa. É claro que o país tem um território, pessoas dentro dele, um governo que governa as pessoas e essa empresa que governa o governo.

     Mas é um país fictício. Ninguém no mundo acredita em sua existência. Oficialmente ele existe – está delimitado em um mapa, tem uma História oficial, mitos particulares e a mística necessária em cima de tudo isso, tudo o que um país deve ter – mas é difícil acreditar na sua existência. As pessoas são sorridentes demais, acessíveis demais, cordatas demais, submissas demais, maleáveis demais, quase sem vontade própria, quase não são pessoas. Parecem animais domésticos, robôs programados. Dá um nervoso em todos os que chegam naquele país e sempre recebem um “sim” para qualquer pedido. Algo está errado naquele país. Ou certo demais.

     Mas aquela empresa, que manda em todos e em tudo, decide que algo deve ser feito, vamos mexer com esse povo, criar uma guerra civil, fazer com que se interesse por algo diferente daquilo que mandamos ele se interessar, precisamos de respostas e somente as enquetes não bastam, as inúmeras entrevistas estão ficando ociosas, alguém tem que nos contradizer em alguma coisa para que novos caminhos sejam abertos, precisamos fabricar um fato novo!

     Guerra civil. Mas como fazer uma guerra civil com um povo tão bom e pacifico? Supremo desafio! Surge uma idéia: existem bandidos no país...

- Bandidos? Mas não são aqueles que?...

- Aqueles mesmo!

- Mas são bandidos bons, somente seguem a tradição dos outros países...

- Mas usam e vendem drogas e drogas são proibidas.

- É claro que são proibidas! Mas faz parte do jogo: tudo o que é proibido é mais atraente, e as pessoas gostam de coisas assim, sentem-se motivadas.

- Pois é este o ponto. Mexer no fator de motivação das pessoas. Fazer com que elas se assustem, se entusiasmem.

- E depois?

- Depois, está criado o fato novo. E um fato novo gera novos acontecimentos, tomadas de posição, coisas novas acontecem dentro das pessoas e elas revelam desejos, contradições, mudanças de comportamento...

- Talvez fiquem mais alertas!

- Talvez fiquem mais alertas, despertem vontades adormecidas e nós estaremos aqui para satisfazê-las, e finalmente dominaremos todo o mercado.

- Genial! Dominaremos o mercado das vontades e das satisfações. Ficaremos anos-luz à frente das empresas concorrentes!

- Então, mãos à obra! Vamos fazer uma grande campanha, mostrando ao povo que os bandidos representam o Mal e que o Governo e as Forças Armadas estão do lado do Bem.

- Forças Armadas? Mas basta a polícia.

- Claro que basta a polícia. Mas o plano tem que ser completo. Não somente a idéia da luta do Bem contra o Mal. Olha só, faz muitos anos que as Forças Armadas estão desmoralizadas neste país. Houve aquela época da ditadura, quero dizer, do governo de exceção... Depois, o período em que o povo pode votar, uma nova Constituição, direitos civis assegurados...

- Estou começando a entender... Uma ditadura democrática, com as Forças Armadas sendo aplaudidas pelo povo...

- Ditadura democrática não. Vamos eliminar a palavra ditadura e trocá-la por Democracia Radical – o que você acha?

- Isso! E uma grande campanha na mídia mostrando o quanto as Forças Armadas são boas para o povo. Depois do primeiro impacto, quando a guerra civil estiver vencida, reconstrói-se a imagem das Forças Armadas. Esta é uma nova geração que aceita tudo o que dissermos.

- Perfeito, mas temos que analisar alguns detalhes.

- Claro. Por exemplo?

- Por exemplo, a relação da polícia com os bandidos, as milícias... Há um ganho muito grande – e para todos – com a venda de drogas. Não podemos acabar de repente com tudo isso. São muitos interesses em jogo.

- Interesses que continuarão sendo satisfeitos, ou você acha que a venda de drogas vai terminar? Nem pensar! É um dinheiro extra – e que dinheiro! – que, como você mesmo diz, é para todos. O problema é que aquele pessoal das favelas está pensando que é só para eles. Tem que levar uma lição!

- Mas e a polícia? E as milícias?

- Continuarão ganhando o seu. Apenas haverá uma transferência de funções. Incorporamos milicianos na polícia, fardamos eles... Fazemos um novo acordo, com bases mais satisfatórias para nós, com os traficantes.

- Mas não vamos combater os bandidos? Eliminá-los?

- Combater sim. Eliminar é outra coisa. Eles tem os contatos que viabilizam o tráfico. Continuará sendo essa a função deles.

- É claro que há alguns que deveriam ser eliminados...

- É claro. E serão.

- Uns cem, cento e cinqüenta...

- Talvez até duzentos, mas os outros serão necessários. Por isso a guerra civil: uma maneira de pegar esse pessoal oficialmente, ao mesmo tempo em que teremos uma audiência espetacular!

- Mas você sabe que algumas coisas ilegais – talvez até inconstitucionais – poderão acontecer...

- Nada que não possa ser justificado como ações pelo Bem Comum.

- Mas a Ordem dos Advogados, o pessoal dos Direitos Humanos e outros grupos do gênero poderão reclamar.

- Reclamar eles podem, mas falta para eles aquilo que nós temos: Poder. Um ou outro mais insistente poderá sofrer um acidente...

- Mas as leis...

- As leis existem para acalmar o povo. Ficções necessárias que atuam no subconsciente da massa para que ela se sinta mais protegida. A verdadeira proteção é física. E esta nós daremos a todos depois da guerra civil.

- É claro, o povo desejará a polícia ostensiva e a presença da Forças Armadas. Uma presença democrática...

- A nossa vantagem é que estamos numa democracia e devemos sempre reafirmar isso: tudo o que for feito será para o bem do povo, que é a maioria e democracia é o governo do povo, logo...

- E na falta de leis, uma pequena pressão no Congresso resolverá tudo.

- Perfeito. Agora só falta provocar a ação. Algo tem que acontecer para que as favelas sejam invadidas. Ônibus e carros queimados, por exemplo. Algumas ligações e pronto.

- Ligações para quem?

- Para os traficantes. Precisamos combinar essa guerra. Eles sairão perdendo no início, mas depois tudo irá se recompor em novas bases.

- Se tudo der certo, ao final teremos as Forças Armadas no poder, mas democraticamente. Esmagaremos a esquerda nesse país. Eles já são poucos, mas sempre incomodam.

- Com o apoio do governo democrático eleito pelo povo.

- Mas...

- Não se preocupe com mais nada. Só faltam aquelas ligações para confirmar detalhes.

- Para os traficantes?

- Para os traficantes, para o governo, para as Forças Armadas, para todos os interessados.

- Você falou na possibilidade de ônibus queimados, mortes...

- Natural. Não se faz um omelete sem quebrar os ovos.

- Os fins justificam os meios!

- Um brinde a isso, ou melhor, uma cafungada a isso: os fins justificam os meios!

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