sexta-feira, 17 de junho de 2011

SOLIDÃO ENCANTADA


Cabeça feita, ativista cibernético, conhecedor de todas as hipocrisias depois de anos de labuta diária entre vereadores e afins, saudoso das madrugadas em que se podia fazer serenata nas janelas das amadas sem ser assaltado por ladrões eventuais ou abordado por policiais com síndrome de excesso de zelo, José Carlos, também conhecido como Zé Carlos, apelidado pelos amigos de Cérbero, por parecer ter três cabeças – uma para o trabalho, outra para a família e a terceira para as horas lúdicas -, mas chamado pelos mais íntimos de Cê, porque somos brasileiros e a preguiça nos leva a arrastar a língua e a atropelar palavras e a preferir sempre apelidos e diminutivos ou a criar uma língua muito particular, dentro da nossa original maneira de ver, pensar e falar as coisas – como diria Fernando Haddad, o atual herói das gentes oprimidas e discriminadas – chegou ao saguão da rodoviária, acendeu uma ponta de baseado e pôs-se a fumar languidamente.

     Foi onde o encontrei em meu passear noturno por lugares ermos e a nossa rodoviária costuma ser um lugar ermo de noite, em horas escuras e escusas, quando pia a coruja e suspeita-se do morcego ou do vampiro dos países emergentes, que usa celular e netbook, mas não consegue esconder os dentes sequiosos do sangue dos pobres ratos que fazem esconderijos nos desvãos, fingindo não existir ou travestindo-se de sombra.

     Lá estava ele. Envolto em fumaça e com os olhos cada vez mais japoneses tentando perfurar as densas nuvens que não eram de chuva em busca de solitárias e enganosas estrelas mortas há milênios. Aproximei-me e o cumprimentei.

     - E aí, Cê. De viagem?
     - Só. E bota viagem nisso...
     - Para onde?
     - Sei lá... Eu deixo vagar. Fico observando, curtindo, sentindo...
     - Para onde tu vai? Qual é o teu ônibus?
     - Sabe aquela canção: “Ônibus que me leva/sem rumo ou direção...”? É por aí. Mas, a princípio, tô viajando daqui a pouco para aquela cidadezinha que fica a 300 quilômetros daqui... Como é mesmo o nome? Solidão Encantada. Olha só que nome. Deve ser o maior barato morar lá. Vou para uma marcha, uma passeata. Fui convidado pelo Facebook por um pessoal engajado de lá, que tá lutando para descriminalizar a erva. Só gente boa.
     - Marcha lá em Solidão?
     - Quem diria, né? Uma cidade tranqüila, pacata, cheia de velhos encantados pela própria solidão e os filhos de repente decidem fazer uma marcha pela descriminalização da maconha. A maioria vem de fora, estudam em universidades. Outros moram lá, cuidando das fazendas dos pais, ou das plantações.
     - E plantam o que em Solidão?
     - Mais arroz e soja. Com garantia do Banco do Brasil e sementes transgênicas dadas por uma multinacional.
     - Sementes de presente, Cê?
     - No primeiro ano da plantação. Depois eles tem que comprar novas sementes a cada ano, porque são sementes híbridas e estéreis: não se reproduzem. E os mais velhos não entendem porque o pasto do campo vai ficando mais ralo, esburacado, a terra desmanchando, assoreando os rios. Mas dá muito dinheiro.
     - E eles sabem que estão destruindo a natureza, Cê?
     - Saber ele sabem, que não são burros, mas dizem que todos fazem a mesma coisa e que se eles não fizerem vão perder de ganhar mais dinheiro. É tudo uma questão de dinheiro.
     - Será que eles plantam cannabis transgênica também, Cê?
     - Taí! Não tinha pensado nisso... Será?
     - Se plantam tem uma razão para marcharem pela descriminalização. Uma razão a mais. Você já pensou se anda fumando baseado de erva transgênica?
     - Em Solidão Encantada plantações de maconha transgênica! Será?! Bem que eu tava sentindo uma sensação diferente agora, depois que fumei. Um sei lá não sei que não batia direito. Um plim-plim-plom que não era bem plim-plim-plom, mais parecia plim-plim-plim- in-in-in-in-in-in-in-in! Gozado...
     - Mas eu só falei na possibilidade, não afirmei nada. Eu tava brincando, Cê.
     - É. Mas eu tava fumando uma erva que eles me mandaram e disseram que era cultivada lá. Depois que eu fui convidado e disse que ia me mandaram uma amostra... Será?!
     - Não pira, Cê. Vai ver que é a erva mais pura que você já fumou e não tem nada de transgênica. Esse não é o seu ônibus?
     - É. Solidão Encantada... Pô, cara, agora tô ficando de cara...
     - Não vai perder o ônibus, Cê. Me dá a tua mala que eu te ajudo.
     - Não precisa não. É só uma mochila e tá aqui nas minhas costas. Nunca desgruda de mim. É só embarcar.
     - Pois então, boa viagem, Cê. Só que eu não tô vendo a tua mochila nas tuas costas.
     - Não tá aqui? Eu bem que tava sentindo uma leveza... Uma leveza extra. Será que me roubaram? Mas eu vim direto, não encontrei ninguém, ninguém esbarrou em mim. Deixa eu ligar pra casa...
     - E aí, Cê?
     - Esqueci a mochila em cima da cama. Acho que foi quando eu fui verificar se a passagem estava na carteira. Depois, dei uma fumada, peguei as chaves e saí. Cheguei aqui, fumei a ponta... E você apareceu. A culpa é sua!
     - Minha? Por que, Cê?
     - Você começou a falar nas plantações transgênicas lá de Solidão Encantada e eu comecei a imaginar se o baseado era transgênico...
     - Mas Cê! Foi você que falou na soja e no arroz transgênico de Solidão. Eu só brinquei dizendo que eles deviam ter maconha transgênica. Mas foi na brincadeira. Não leva a sério.
     - É, mas eles me mandaram aquela erva que faz um plim diferente e agora o ônibus está partindo e eu vou perder a marcha pela liberdade. A culpa é sua!
     - Está bem, Cê, então a culpa é minha, mas não precisa surtar. Você ainda tem tempo de voltar em casa, pegar a mochila e pegar o próximo ônibus para Solidão Encantada. Ou vai amanhã de manhã, se preferir.
     - E você acha que eu ainda vou, depois desta? E se a marcha é fajuta? E se eles estão pensando em me atrair para que eu sirva de cobaia para a erva transgênica deles? E se tudo é uma emboscada? Vou é pra casa! Solidão Encantada nunca mais!
     - Espera aí, Cê! Pensa bem!
     - Eu estou pensando bem. E vou pensar melhor quando chegar em casa e fumar um baseadinho. E não quero te ver tão cedo. Você me dá azar, me fez esquecer a mochila, disse que eu ia pra uma emboscada lá em Solidão Encantada! Fui!
     - Não surta, Cê! Espera aí!

     Cê já tinha sumido na noite. Olhei em volta e vi alguns ônibus. Pessoas chegando, pessoas partindo; sorrisos, beijos, abanos... Não se ouvia mais o pio da coruja nem se vislumbrava qualquer morcego ou vampiro sedento de sangue de ratos. Os fantasmas eram apenas fantasmas e a noite envelhecia na sua solidão encantada.

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