quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A LIBERDADE DE TORTURAR



Muito curioso o fato de a Comissão Nacional da Verdade apurar fatos ocorridos entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 1988. Após outubro de 1988 supõe a Comissão que não houve mais torturas no Brasil, ou talvez quisessem se poupar ao árduo trabalho de investigação. Árduo e malcheiroso, porque os torturados, após aquela data, não são presos políticos, mas gente pobre, muito pobre, extremamente pobre. Veja-se o caso recente do pedreiro Amarildo, que foi torturado e morto por policiais do Rio de janeiro e não fosse o trabalho insistente de ONGs e internautas conscientes para que a desaparição de Amarildo fosse investigada, nada seria apurado. Amarildo continua desaparecido e o que há de concreto é a prisão de alguns policiais que, imagino, logo serão soltos.


  A Polícia Civil do Rio de Janeiro estuda a possibilidade da implantação de uma delegacia especializada em pessoas desaparecidas. Estuda e não se sabe quanto tempo continuará estudando essa possibilidade. Vejam a inversão de valores: eles não estudam a possibilidade de formar policiais com um mínimo de educação, cultura, respeito à Constituição e, principalmente, sensibilidade e amor ao próximo. Estudam, isso sim, a possibilidade de pesquisar o desaparecimento de milhares de pessoas com pouca ou nenhuma projeção social que, a exemplo de Amarildo, ou foram torturados e mortos por policiais ou desapareceram por outras causas que podem, inclusive, incluir a abdução por malignos extra-terrestres.


   De acordo com Antônio Carlos Costa, presidente da organização Rio da Paz, em matéria publicada pelo site Terra (WWW.noticias.terra.com.br) em 06 de novembro de 2013, somente de janeiro a julho deste ano (2013) desapareceram no Rio de Janeiro cerca de três mil e seiscentas pessoas. Em todo o Brasil, segundo a mesma fonte, durante o atual governo desapareceram 36 mil pessoas, segundo os registros oficiais.


   E o que tem a ver a Comissão Nacional da Verdade com essas estatísticas? Nada. Absolutamente nada. A Comissão Nacional da Verdade se dedica aos casos de desaparecidos até 05 de outubro de 1988. Depois daquela data, adveio a nova Constituição Federal, o recolhimento dos militares para os quartéis e, de Sarney a Dilma, nenhuma tortura com morte pode ter acontecido no Brasil. A Comissão Nacional da Verdade se preocupa muito com o passado, o que é mais uma maneira de fazer de conta que, no presente, estamos no Brasil-Maravilha.


   Neste idílico país apenas o passado nos perturba. A criminalização da pobreza sequer é comentada na augusta Comissão que se preocupa muito com a Verdade. Os membros muito politizados da Comissão não discutem a militarização das favelas ou a ausência dos direitos civis para milhões de pessoas pobres, muito pobres, extremamente pobres, e até para as que não são tão pobres e contestam o cheiro fétido na boca do Estado mentiroso.


   Saibam os navegantes que o jornalista e deputado baiano Emiliano José, no exercício de sua função de jornalista publicou uma matéria em seu blog, intitulada “A Premonição de Yaiá”. O texto, segundo o jornalista, reproduz o depoimento de Maria Helena Rocha Afonso, conhecida como dona Yaiá, mãe de Renato Afonso, preso político que foi torturado barbaramente no Quartel da Polícia Militar dos Dendezeiros em Salvador. O torturador teria sido Átila Brandão de Oliveira, hoje bispo da igreja Caminho das Árvores. O depoimento de Renato Afonso foi publicado no site da revista Carta Capital sob o título “Corpo amputado querendo se recompor”, ocasião em que narrou as torturas que sofreu.


   O bispo entrou com ação de calúnia contra o jornalista. Imediatamente, o Sindicato dos Jornalistas da Bahia (Sinjorba) publicou nota de repúdio, evidenciando que com a queixa-crime o pastor Átila tenta cercear a liberdade de imprensa e de opinião. Acrescenta que Emiliano estava em pleno exercício da profissão e reportou depoimentos com base em fontes claramente identificadas.


    Mesmo assim, a juíza Marielza Brandão, da 29ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo, Cíveis e Comerciais de Salvador, condenou o jornalista a retirar a matéria do seu site, além de acatar a indenização de 2 milhões de reais pedida pelo bispo, ou pastor.


   Se essa decisão prosperar e se transformar em jurisprudência, breve teremos a liberdade de imprensa completamente tolhida no território nacional, o que significará que, se a ditadura militar acabou, a ditadura do Judiciário está brandindo a espada da cega Justiça a favor dos torturadores, similares e genéricos que ainda empestam o país. Os que denunciam são culpados, a verdade torna-se mentira e não demorará muito para que o celebrado estado de direito conceda total liberdade de ação aos torturadores. E, se o passado não pode ser investigado a Comissão Nacional da Verdade, por mais inócua que seja, perderá a razão de ser e os amarildos de todo o tipo, que não tem nenhum partido ou entidade a defendê-los continuarão, cada vez mais a ser torturados e mortos, para prazer e deleite dos torturadores oficiais.


   Abaixo, a matéria de Emiliano José, que já está sendo veiculada em dezenas de sites e blogs do país e, portanto, se transformou em notícia.



“A PREMONIÇÃO DE YAIÁ” - Emiliano José


"...Um calafrio, sensação estranha. Tempos dolorosos. Não vivera iguais nos seus quase cinquenta anos. Filhos presos, tantos amigos presos. Theodomiro, Paulo, quem mais? Tantos. Penso na crueldade dessa gente, quanta maldade. A sensação estranha persistia, como um aviso. Seria de Deus?  Bons, os meus filhos eram bons. Marquinhos já solto, na minha memória era setembro de 1971.

"Renato Afonso, no Quartel dos Dendezeiros, transferido do Rio de Janeiro, onde fora preso em fevereiro e perversamente torturado. O corpo já não estava tão estropiado. Não fosse meu marido Orlando, e não estaria vivo. Conseguiu fazer chegar o pedido a dom Eugênio Sales, que não matassem o filho. Dom Eugênio intercedeu, e o salvou. No Rio, passou por coisas horríveis, tanta tortura que eu nem acreditava que existisse. Tudo me vinha à mente em flashes rápidos, numa velocidade absurda. No meio das lembranças, aquela sensação estranha.

"Fui muitas vezes aos Dendezeiros, levava bolo pros meninos, dava um pedaço pro coronel Ghetsemany Galdino, que gostava muito do bolo de chocolate. Comandava o quartel. Eu já me afeiçoara aos outros meninos, Tibério, Roriz, também presos políticos. Nunca gostei de ouvir meus filhos serem chamados de terroristas, nem os amigos deles. Por que tudo aquilo vinha assim, aos borbotões, lembranças de tanta coisa daqueles ásperos tempos? E tudo era acompanhado daquela sensação incômoda, como se algo a chamasse, como se alguma coisa ruim estivesse acontecendo.
 

"E de repente, uma iluminação, e a certeza: Renato sofria, precisava dela. Como se ouvisse a voz enérgica de um anjo: que não perdesse tempo, seu filho corre perigo. Estava longe, morava em Nazaré, na Cidade Alta, longe dos Dendezeiros, Cidade Baixa. Orlando não estava em casa. Peguei um táxi, segui pro quartel. À porta, ninguém me barrou, pois, já era personagem comum. Parecia que o anjo me guiava. Dirigi-me a passos rápidos para uma sala onde tinha certeza que Renato estava. Não sabia como tinha certeza. Tinha.


"Um sentinela à porta. Quero ver meu filho, quero ver meu filho, sei que ele está aí. Calma, minha senhora. Calma, nada. Preciso vê-lo. O soldado parecia assustado, olhava pra mim, indeciso. Eu ali segura de meus direitos de mãe. Pediu que eu esperasse, iria entrar, voltaria, me traria uma resposta. O sentinela entrou, voltou, e disse está tudo bem com seu filho, nada de mal vai acontecer com ele. Mas, ele está aí? Está. Então quero vê-lo. Não pode, mas, eu garanto que está tudo bem com ele. Me acalmei um pouco. O anjo parecia aquiescer, mas me disse não arrede pé.


"E eu soube depois: dentro da sala, Renato já havia apanhado bastante, socos, pontapés, perguntas aos gritos. Após o Rio de Janeiro, transferido para a Bahia por interferência de Orlando, não sofrera mais torturas. Mas, naquele dia, um sentinela veio buscá-lo. Renato perguntou por que estava sendo retirado da cela. O soldado não sabia. Levado para uma sala, logo depois viu entrar uma equipe de torturadores chefiada por Átila Brandão, que conhecera como agente infiltrado desde a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, onde estudaram juntos em 1968.


"Átila comandou com ferocidade e gosto a pancadaria inicial, que seria sucedida pelo pau de arara e pelo choque elétrico, equipamentos que a equipe trouxera. Queria informações sobre a passagem dele pelo Paraná, onde estivera como dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Como no Rio, Renato, fiel aos seus amigos, se recusava a dizer qualquer coisa.
 

"Soube que o soldado entrou, cochichou no ouvido de Átila, e ele, irritado, mandou parar tudo, juntar o pau de arara e o resto, e se retirou. Cessou a tortura. Quando Renato saiu da sala, eu o abracei, perguntei-lhe se estava tudo bem, ele disse sim, mas pediu que avisasse o advogado Jaime Guimarães – queriam voltar a torturá-lo. Fiz o que Renato pediu. Não voltou a ser torturado."


Maria Helena Rocha Afonso de Carvalho partiu, Yaiá, e antes de seguir para o infinito me deu esse depoimento. Deixa saudades imensas, e o exemplo de uma vida cheia de espiritualidade, fé e coragem. Viveu mais de 90 anos.

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