sábado, 21 de dezembro de 2013

NATAL



Época da máxima hipocrisia. Finges felicidade porque é Natal e todos os males devem ser esquecidos – vamos às compras! É necessário gastar, diz o Papai Noel criado pela Coca-Cola no país do ateísmo oficial, e não olharás os lírios do campo que não semeiam nem fiam, mas te preocuparás muito com o que comes e com o que vestes, mesmo porque não há mais lírios no campo, mas bois e vacas prontos para o abate e grãos geneticamente modificados e um grande deserto verde onde ziguezagueiam tristes rios poluídos espelhando o teu submisso coração. 

   Não há salvação para a tua alma já subornada pelas campanhas publicitárias, em protesto pela natureza devastada não pedirás que, na curva do rio, enterrem o teu coração, porque este – agora sabes – é somente uma válvula que te permite viver um determinado espaço de tempo neste mundo dominado por maníacos e és mais um na torcida, dividindo a mesma solidão e o mesmo desamparo, ansiando pelo orgasmo do gol que te fará entusiasmado por alguns minutos e depois, quando as luzes apagarem e o sol se esconder, na tua desvalida noite desejarás comprar o amor, comprar a amizade, comprar o prazer, porque assim te foi ordenado pelos robóticos deuses da matéria. 

   Obedecerás. Não amarás o menino nascido em uma manjedoura, porque pensar na pobreza traz azar e a tua mente está nas riquezas e o teu deus é o dourado ídolo Mamom ou que nome tenha: poderá ser Demiurgo ou Manu ou Javé ou qualquer outro que te prometa a vida eterna nas riquezas do mundo, a sorte na loteria, a perfeita corrupção, pois não acreditas no reino do Pai ou na sua justiça, e sim no prazer que os sentidos te podem ofertar e por isso te absorves a visitar lojas e a olhar vitrines e a buscar festas e embriaguez, e o teu coração que ainda não foi enterrado ou transplantado ou jogado no lixo e aprendeu que deve ser o relógio mecânico da tua automática vida te avisa que este é o tempo de comprar e receber presentes, porque entendes que o amor é uma útil troca física e virtude é sinônimo de benefícios e proveitos. 

   Momento de absoluta divisão de classes. Os pobres, os infelizes, os desassistidos, os que têm um mau carma, ou: os que são roubados, ultrajados, usados e jogados fora, considerados objetos de uso, massa moldável, recebem esmolas e ficam felizes, porque é o grande dia dos mendigos e de catar lixo comestível.

Participaste da caixinha para os aflitos e falaste muito bem dos indigentes, separaste roupas e brinquedos para as associações de caridade e rezaste para não ser assaltado pelos miseráveis. Suspiras aliviado entre as grades da tua casa, Deus é bom e protege os homens de bens – acreditas – que irão para o céu da prosperidade se forem altruístas e condescendentes para os infelizes que terão um céu bem mais improdutivo – coitados! –, caso não se revoltem com a sua situação vexatória, perseverando na obediência dos despojados, na subserviência dos extorquidos, na inação dos acomodados, na crônica insensibilidade dos mortos em vida. 

   E te regozijarás intimamente quando vires a imensa fila dos esbulhados a esperar o consolo da tua gorda mão filantrópica e dirás a eles que são os escolhidos para o reino das beatitudes e tu – pobre de ti que tens o coração guardado num cofre  -, assoberbado pelo peso das responsabilidades sociais ainda sofrerás muito para aliviar tu grosseira condição mundana, mas o teu deus é o amparo e fortaleza das tentações e apetites e saberá alimentar tua cobiça e volúpia, e o que mais resta é desejar intimamente um feliz Natal e muito próspero e particular ano novo.

Um comentário:

  1. Muito boa matéria sobre o Natal. Realista como a sociedade mundial (com raras exceções) bem sabe ser.

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