quarta-feira, 4 de maio de 2016

RESISTIR SEMPRE




Ernesto Sábato, no seu romance “Sobre Heróis e Tumbas” dedica um ou dois capítulos sobre o movimento anarquista na Argentina, que teve muita força no início do século vinte e foi duramente reprimido pelos governos reacionários e até por aqueles que se diziam progressistas. Nos Estados Unidos, em 1º de maio de 1886, a Associação Internacional dos Trabalhadores organizou 5.000 greves com 340.000 grevistas que se espalharam pelo país. Em Chicago houve muita repressão, mortes e injustiças quando 4.000 trabalhadores anarquistas saíram para as ruas para reivindicar oito horas de trabalho, oito horas de descanso e oito horas de lazer. As manifestações continuaram por mais alguns dias e no dia 4 de maio houve uma repressão brutal na praça Haymarket, que provocou mais de 100 mortos e a prisão de militantes operários e anarquistas. Quatro dentre os presos foram enforcados pelo Estado norte-americano. Um deles se suicidou na cela. 

   O dia 1º de maio deveria ser um dia de luta e não um dia de festa, principalmente em países, como o Brasil, onde está acontecendo um golpe de Estado contra os direitos dos trabalhadores e onde ninguém entende como alguém pode sobreviver unicamente com um salário mínimo. No entanto, o que se viu no domingo, 1º de maio, no vale do Anhangabaú, além do discurso da Dilma e de mais alguns, por assim chamar, “líderes” sindicais e políticos, foi festa, muita festa. E por todo o Brasil. Alienadamente. Já está virando um hábito festejar o 1º de maio, como se todos os problemas sociais estivessem resolvidos e nada mais restasse senão festejar a vitória popular. 

   No Brasil, as idéias anarquistas foram veiculadas por imigrantes italianos – como Oreste Ristori e Gigi Damiani - no início do século vinte, principalmente em São Paulo, em bairros como o Brás, Belém ou o Moca, de grande aglomeração operária. Ali surgiram os primeiros sindicatos, de orientação nitidamente libertária, assim como os primeiros panfletos e jornais socialistas anarquistas, como o “La Battaglia” ou o “Terra Livre”. Também eram encenadas peças de teatro, com textos vindos da Europa ou escritos aqui mesmo. O anarquismo - que não se deve confundir com bagunça - sempre levou em conta a tomada de consciência social através da arte e da educação. Surgiram as Escolas Modernas, onde eram misturados meninos e meninas, defendia-se o fim dos exames e dos castigos e era dada uma educação científica, em oposição ao ensino religioso. 

   Vai ficar muito barato o golpe organizado pelas duas casas do Congresso, a Polícia Federal de Sérgio Moro e o STF, se não houver verdadeira resistência. Venderam ao povo a idéia de que democracia é sinônimo de urnas quando, na verdade, é o governo do povo, que deve participar em todos os setores da administração e não simplesmente ser representado por oportunistas e corruptos. Câmara e Senado deixaram claro que não representam o povo ao darem o sinal para o golpe de Estado. O STF não quer julgar os verdadeiros corruptos, prefere premiá-los com a impunidade. E Dilma espera placidamente que o golpe aconteça acreditando, talvez, que um ou outro discurso do seu defensor motive senadores vendidos para a direita golpista. Ela esperava o mesmo da Câmara de Deputados e o que se viu foi uma palhaçada. 

   Em 1905, graças à luta dos anarquistas, foi criada a Federação Operária de São Paulo, reunindo associações de trabalhadores da cidade. Em abril do ano seguinte, o Rio de Janeiro sediou o 1º Congresso Operário Brasileiro, encontro que é considerado o início do sindicalismo brasileiro. Na ocasião, foram erguidas bandeiras de luta, como o fim do trabalho infantil e a redução da jornada de trabalho para oito horas diárias. No dia 1º de maio de 1907 eclodiu a primeira greve geral da história do Brasil. A greve durou até meados de junho e conseguiu com que muitas empresas adotassem a jornada de oito horas diárias. Mas a repressão foi violenta. A Federação Operária foi invadida, com a apreensão de documentos e a prisão de muitos militantes. Mais de 130 imigrantes foram deportados. 

   Fazer conchavos com a direita para substituir o golpe apelidado de impeachment pelo golpe das novas eleições é muito feio e vai cair muito mal para deputados e senadores petistas ou de partidos aliados que se dispõem gosmentamente a simplesmente aceitar que o governo de Dilma deve ser abreviado, porque assim quer os Estados Unidos e assim insistem aqueles ligados aos cartéis, multinacionais e oligarquias nacionais eternamente vendidas a interesses outros que não os do povo brasileiro. Equivale a iludir a população amestrada pela mídia golpista com a piada das eleições, como se estas fossem a Caixa de Pandora às avessas que proporcionará, num passe de mágica, todas as benesses até então negadas. Mesmo a proposta de novas eleições para senadores e deputados não passa de uma armadilha para descontentes despolitizados que acreditam que a substituição de pessoas no Congresso Nacional trará consigo a moralidade e a ética num sistema político apodrecido pela raiz. 

   Em 1917 aconteceu uma greve geral em São Paulo, com 45 mil trabalhadores parados, praticamente todos os operários da capital paulista. Somente voltaram ao trabalho com a garantia de que os seus direitos seriam respeitados e depois de receberem um aumento de 20% em seus salários. Em 1918, no entanto, a repressão contra o movimento anarquista aumentou. Gigi Damiani foi expulso do Brasil e Oreste Ristori fugiu para a Argentina. As Escolas Modernas foram fechadas e muitos operários, até então anarquistas, aderiram ao comunismo, que se tornava vitorioso na Rússia. Enquanto os anarquistas pregavam a abolição do Estado, os comunistas não desejavam que o Estado acabasse de uma hora para outra, mas passasse às mãos dos operários, o que demandaria uma longa luta escalonada em etapas, que incluíam a momentânea aceitação do regime burguês. 

   Aceitar o golpe sem lutar será declaração de impotência devida à falta de politização dos trabalhadores, em sua maioria ligados a sindicatos governistas que aceitaram a política de alianças com a direita, e agora, atordoados, carecem de organização para uma verdadeira resistência contra o assalto aos seus direitos. 

   O Partido Comunista Brasileiro foi fundado em 1922 e, em seus primeiros tempos, foi um partido revolucionário. De acordo com Michael Löwy, o próprio Marx era contra o Estado. Em seu estudo sobre a Comuna de Paris – A Guerra Civil na França, 1871 – Karl Marx insiste na ruptura com o Estado, que chama de “corpo artificial, jibóia constritora, pesadelo sufocante, enorme parasita”. É fato que o objetivo do socialismo marxista visa o fim do Estado, com o comunismo, que seria uma sociedade de produtores com tudo em comum, mas também é verdade que alguns países socialistas perderam o rumo ao se enredarem em extrema burocracia e autoritarismo. O governo do povo, por definição deve ser de todo o povo e não de um grupo que se auto-define como vanguarda do proletariado. Esta foi uma das principais questões que colocou Bakunin contra Marx durante a existência da 1ª Internacional, que foi dissolvida em 1872, logo após a expulsão de Bakunin da organização. 

   O PT nunca foi um partido comunista e chegou mesmo a expulsar do partido algumas expressivas correntes de esquerda que se tornaram novos partidos políticos, como o PCO e o PSTU. O próprio PRC, que se dizia revolucionário e comunista, se auto-dissolveu para não ser expulso e seus membros acabaram aceitando a política centrista de alianças com a direita, com o único objetivo de conquistar o poder pelo poder. Ao povo, reservaram algumas migalhas assistencialistas. O PT deixou-se absorver pela política neoliberal, e, no momento em que seu governo está sendo golpeado pela extrema-direita, que pretende tirar até as migalhas do povo, não sabe como agir, a não ser dentro da aceita paródia institucional, propondo novas eleições para dar ao golpe um aspecto de legalidade. 

   Durante a Guerra Civil Espanhola, comunistas e anarquistas estavam do mesmo lado, lutando contra as tropas fascistas de Franco, mas o que se viu foi uma grande batalha entre as duas principais correntes da esquerda, o que, de certa forma, facilitou a ascensão do fascismo, que perdura até hoje, apesar da máscara democrática usada pelos políticos espanhóis. Alguns historiadores lembram do maio de ’68, na França, quando surgiram líderes que se diziam anarquistas, como Daniel Cohn-Bendit. Na verdade, eram oportunistas. Hoje, Cohn-Bendit pertence ao Parlamento Europeu e sente-se muito à vontade integrado ao sistema que fingiu combater. Um dos erros do anarquismo e de outras propostas meramente libertárias é a extrema permeabilidade que permite a infiltração de elementos estranhos que acabam se revelando agentes do sistema opressor. 

   O ‘dedurismo’ é uma característica marcante dos canalhas. No Brasil de hoje, usa-se uma coisa chamada delação premiada, excrescência jurídica importada de países fascistas que permite a bandidos presos passar informações nunca confiáveis a golpistas de plantão que objetivam derrubar um governo legítimo eleito pela maioria da população. 

   Atualmente, o anarquismo vê-se diminuído em relação ao marxismo, que apresenta o socialismo científico como sólida filosofia. Todavia, sempre que ocorre um movimento libertário, aparentemente espontâneo, não prescrito por qualquer partido político, será esta uma atitude anarquista. Rosa Luxemburgo escreveu em “Reforma ou Revolução?” que o anarquismo pertence a um momento de infantilidade do socialismo. Estava certa. O anarquismo grita “Não!” como criança birrenta, enquanto o sisudo marxismo pondera “Quem sabe?”, mas salta da sua cadeira para atender a criança que também grita dentro dele. 

   Em suas reflexões sobre a 1ª Internacional – que contou com a presença de marxistas, anarquistas e até de defensores do socialismo utópico - escreveu Michael Löwy: “A experiência da 1ª Internacional não pode ser repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância pata todos nós, no começo do século XXI, quando novamente marxistas e anarquistas reúnem forças e agem conjuntamente, como indivíduos, como redes ou como organizações políticas (cuja existência não é um obstáculo à cooperação), no Movimento Justiça Global, nas lutas ecológicas radicais, em apoio aos Zapatistas em Chiapas, nas mobilizações em massa dos Indignados (Espanha, Grécia) ou no Occupy em Wall Street e outros cantos do mundo”. (http://revistaforum.com.br/digital/166/primeira-internacional-150-anos-depois/). 

    Vamos ver o que acontece com essa cooperação no “Ocupe Senado” ou “Ocupe STF” – movimentos que estão surgindo e tomando corpo. Os estudantes, como sempre, dão a letra. Já ocuparam escolas e a Assembléia Legislativa de São Paulo e somente depois das ocupações surgiram cartazes e faixas de organizações sindicais que sozinhas nada fariam. “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” escreveu Marx, mas isso somente acontecerá se os trabalhadores assim o desejarem e se lutarem para que isso aconteça. E não só os trabalhadores. Limitar a resistência ao fascismo a uma única classe social, ainda despreparada para a luta devido aos anos de cooperação com as classes dominantes, é ingenuidade. A emancipação dos trabalhadores deve abranger a emancipação de toda a sociedade. 

   Marx também disse, corretamente, que a história da humanidade é a história da luta de classes, mas não é necessário, tampouco obrigatório, que classes que se sucedem no poder imitem, em seus erros e defeitos, as classes vencidas. Revolução é um processo que não admite um final, ou não será revolução. Certa vez, perguntaram a Fidel Castro quando iria tirar a sua barba. “Quando terminar a revolução”, respondeu. Fidel ainda não tirou a barba e nem irá tirar. “As revoluções são o motor da História”, disse Marx, e esse motor não pode ficar parado ou enferruja.  

   Após a tomada do poder em Cuba, Che Guevara negou-se a ficar na ilha e assumir um trabalho burocrático. Era um revolucionário com coração anarquista e preferiu lutar na África e, depois, na guerrilha boliviana, quando foi preso e assassinado. Mao-Tsé-Tung não se contentou em tomar o poder na China. Anos depois, para motivar as novas gerações, promoveu a Revolução Cultural, tão criticada pela esquerda ocidental. Mas a esquerda ocidental, notadamente a européia, em sua maioria não é revolucionária. Às vezes é necessário “derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes”, como diz a letra de “É Proibido Proibir”, de Caetano Veloso. Outras vezes, torna-se urgente reerguer estantes, arrumar prateleiras e, quem sabe, até mandar esculpir novas estátuas. “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; ora, o que importa é transformá-lo” – escreveu Marx em suas “Teses Sobre Feuerbach”. 

   Dilma disse que vai resistir até o fim. Não deve. Resistir até o fim é o mesmo que admitir que haja um fim para a resistência. Resistir sempre deve ser a palavra de ordem.

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